quarta-feira, 16 de maio de 2012

A Arte de Ouvir e Falar Para Ser Ouvido!


As Mil e uma Noites ~ Rubem Alves

Estou me entregando ao prazer ocioso de reler As Mil e uma Noites.
O encantamento começa com o título que, nas palavras de Jorge Luis Borges, é um dos mais belos do mundo.
Segundo ele, a sua beleza particular se deve ao fato de que a palavra mil é,para nós, quase sinônimo de infinito.
Falar em mil noites é falar em infinitas noites.
E dizer mil e uma noites é acrescentar uma além do infinito.
As Mil e uma Noites são a história de um amor - um amor que não acaba nunca.
Não existe ali lugar para os versos imortais do Vinícius (tão belos que o próprio diabo citou em sua polêmica com o Criador): Que não seja eterno, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure...
Estas são as palavras de alguém que já sente o sopro do vento que dentro em pouco apagará a vela: declaração de amor que anuncia uma despedida.
Mas é isto que quem ama não aceita.
Mesmo aqueles em que a chama se apagou sonham em ouvir de alguém, um dia, as palavras que Heine escreveu para uma mulher: "Eu te amarei eternamente e ainda depois".
É preciso que a chama não se apague nunca, mesmo que a vela vá se consumindo. A arte de amar é a arte de não deixar que a chama se apague.
Não se deve deixar a luz dormir.
É preciso se apressar em acordá-la (Bachelard).
E, coisa curiosa: a mesma chama que o vento impetuoso apaga, volta a se acender pela carícia do sopro suave...
As Mil e Uma Noites são uma história de luta entre o vento impetuoso e o sopro suave.
Ela revela o segredo do amor que não se apaga nunca.
Um sultão, descobrindo-se traído pela esposa a quem amava perdidamente,toma uma decisão cruel. Não podia viver sem o amor de uma mulher.
Mas também não podia suportar a possibilidade da traição.
Resolve, então, que iria se casar com as moças mais belas de seus domínios, mas depois da primeira noite de amor,mandaria decapitá-las, assim o amor se renovaria a cada dia em todo o seu vigor de fogo impetuoso, sem nenhum sopro de infidelidade que pudesse apagá-lo.
Espalharam-se logo, pelo reino, as notícias das coisas terríveis que aconteciam no palácio real: as jovens desapareciam, logo depois da noite nupcial.
Scherazade, filha do vizir, procura então o seu pai e lhe anuncia sua espantosa decisão: desejava tornar-se esposa do sultão.
O pai, desesperado, lhe revela o triste destino que a aguardava, pois ele mesmo era quem cuidava das execuções.
Mas a jovem se mantém irredutível. A forma como o texto descreve a jovem Scherazade é reveladora.
Quase nada diz sobre seu virtuosismo erótico. Mas conta que ela lera livros de toda espécie, que havia memorizado grande quantidade de poemas e narrativas, que decorara os provérbios populares e as sentenças de filósofos.
E Scherazade se casa com o sultão.
Realizados os atos de amor físico que acontecem nas noites nupciais, quando o fogo do amor carnal já se esgotara no corpo do esposo, quando só restava esperar o raiar do dia para que a jovem fosse sacrificada, ela começa a falar.
Conta histórias.
Suas palavras penetram os ouvidos do sultão. Suavemente, como música.
O ouvido é feminino, vazio que espera e acolhe, que se permite ser penetrado. A fala é masculina, algo que cresce e penetra nos vazios da alma.
Segundo antiquíssima tradição, foi assim que o Deus humano foi concebido:
pelo sopro poético do Verbo divino, penetrando nos ouvidos encantados e acolhedores de uma virgem.
O corpo é um lugar maravilhoso de delícias, mas Scherazade sabia que todo amor construído sobre as delícias do corpo tem vida breve. A chama se apaga tão logo o corpo se tenha esvaziado de seu fogo.
O seu triste destino é ser decapitado pela madrugada: não é eterno, posto que é chama. E então, quando as chamas dos corpos já se haviam apagado, Scherazade sopra suavemente. Fala. Erotiza os vazios adormecidos do sultão.
Acorda o mundo mágico da fantasia. Cada história contém uma outra, dentro de si, infinitamente.
Não há um orgasmo que ponha fim ao desejo. Ela lhe parece bela, como nenhuma outra. Porque uma pessoa é bela, não pela beleza dela, mas pela beleza nossa que se reflete nela...
Conta a história que o sultão, encantado pelas histórias de Scherazade, foi adiando a execução, por mil e uma noites, eternamente e um dia mais.
Não se trata de uma história de amor, entre outras, é ao contrário, a história do nascimento e da vida do amor.
O amor vive neste sutil fio de conversação, balançando-se entre a boca e o ouvido.
É preciso saber ouvir. Acolher.
Deixar que o outro entre dentro da gente.
Ouvir em silêncio, sem expulsá-lo por meio de argumentos e contra-razões.
Nada mais fatal contra o amor que a resposta rápida.
Alfange que decapita. Há pessoas muito velhas cujos ouvidos ainda são virginais:
nunca foram penetrados.
E é preciso saber falar.
Há certas falas que são um estupro.
Somente sabem falar os que sabem que As Mil e uma Noites são a história de cada um. Em cada um mora um sultão, em cada um mora uma Sherazade.
Aqueles que se dedicam à sutil e deliciosa arte de fazer amor com a boca e com o ouvido (esses órgãos sexuais que nunca vi mencionados nos tratados de educação sexual...) podem ter a esperança de que as madrugadas não terminarão com o vento que apaga a vela, mas com o sopro que a faz reacender-se.


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